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Aquarius – A Torre como dissolução exógena e endógena

por Martha Rocha
Ilustração de Bambi para o texto "Aquarius - A Torre como dissolução exógena e endógena" de Martha Rocha.

Martha Rocha é graduanda em Administração Pública pela UNICAMP, taróloga e curiosa. Não é Miss Brasil (ainda). É colaboradora da Aboio.


“Hey I’m gonna get you too! Another one bites the dust.” É com este trecho de Another One Bites the Dust, do Queen, que Kleber Mendonça Filho lança um feixe de luz premonitório sobre o mote principal de Aquarius (2016), logo no início. Clara (Sônia Braga), dona e moradora de um apartamento em um tradicional edifício em Recife, resiste a inúmeras e insistentes investidas de uma construtora para que ela venda seu apartamento, de modo que seja possível sua demolição e se inicie um moderno empreendimento imobiliário no lugar do antigo prédio. Como um predador indomável, a construtora quer atingi-la também, tal qual canta Freddie Mercury.

O longa é uma brilhante ode à resistência, à memória, à existência no ambiente como oposição a um produto vendável, e principalmente à vida tecida em conjunto com o espaço e não à sua revelia. Sônia Braga e sua força exuberante no longa, junto à temática da iminente demolição do prédio nos sussurram um convite irrecusável: esboçar uma conversação entre a obra e o tarô, esta fonte inesgotável de simbolismo, pelas lentes do arcano de número 16, A Torre.

Diferentemente do que os outros arcanos evocam como aspectos perfeitamente naturais, à Torre, como uma edificação erguida pelas mãos do homem e como um ato de rebeldia frente à lei universal da efemeridade, só resta a queda. Queda esta que pode parecer agourenta, mas é somente a manifestação do divino nesta realidade, nos aterrando e lembrando do fato mais prosaico de todos, que é a fragilidade de todas as coisas.

É imprescindível, antes de dar início às ponderações que se cruzam entre a lâmina de tarô e o filme, observar a carta em sua imagética mais superficial: uma torre literal é atingida por um raio e, com isso, além da edificação ser colocada abaixo e em chamas, é possível observar dois indivíduos sendo lançados para fora dela. Quando este arcano figura em uma tiragem, é mais do que comum o consulente se sentir aflito pelos seus significados gerais, assim como aflito se sente também o taromante, que procura fazê-lo entender que o desmanche da estrutura possui uma importância inegável.

Como era de se esperar, A Torre carrega consigo a dissolução de estruturas que pareciam muito bem alicerçadas. Dentro do contexto de um relacionamento, obviamente um rompimento; em relação ao trabalho, uma demissão repentina; no geral, um acidente de percurso, claramente, inesperado. O que são acidentes, senão expectativas quebradas de como a vida deveria caminhar? É por esse motivo que, apesar do tema da mudança ser uma constante no oráculo com cartas como A Roda da Fortuna e A Morte, somente A Torre tem a peculiaridade do fator surpresa e da externalidade que é combustão para explosões disruptivas e modificações bruscas na realidade de quem com ela se depara.

A título de exemplo, A Roda da Fortuna comunica a mutação contínua de todas as coisas, ou tal como o pré-socrático Heráclito proclamava, o fato de tudo ser fluxo. A Morte, por sua vez, num discurso parecido, nos lembra que o perecimento natural de todas as coisas é um destino certo, mas apenas para dar espaço para que o novo floresça. A Torre, além desses mesmos significados, traz um tom dramático e resistente. Diferentemente do que os outros arcanos evocam como aspectos perfeitamente naturais, à Torre, como uma edificação erguida pelas mãos do homem e como um ato de rebeldia frente à lei universal da efemeridade, só resta a queda. Queda esta que pode parecer agourenta, mas é somente a manifestação do divino nesta realidade, nos aterrando e lembrando do fato mais prosaico de todos, que é a fragilidade de todas as coisas. É por isso que é possível associar A Torre também a catástrofes, desastres naturais e estados de saúde debilitantes.

Apesar do paralelo a esta altura parecer óbvio, A Torre não é manifestada no filme somente pela iminente destruição do querido apartamento de Clara, tampouco pelo Edifício Aquarius em sua totalidade. O arcano é igualmente evocado por Clara em toda a sua existência, que é simultaneamente o edifício (tanto o que habita quanto o que figura na lâmina), o raio que o atinge, e os corpos que são lançados ao chão. Essa tridimensionalidade caminha junto à separação do filme em três capítulos: “O Cabelo de Clara”, “O Amor de Clara” e “O Câncer de Clara”.

Em “O Cabelo de Clara”, descobrimos que a personagem principal enfrentara um câncer de mama quando jovem e, logo após o tratamento, passou a usar seu cabelo curto. Clara, logo no início, personifica o lado de luz do arcano, que é a demolição. Demolição não se confunde com destruição: enquanto a segunda não prevê continuidade e tampouco espaço criativo, a primeira tem como pressuposto a ruína fecunda, ou seja, aquilo que é demolido logo dá espaço a uma nova empreitada. Pelo cabelo que renasce e pelo corpo que sobrevive à devastação de uma doença é que Clara projeta o elemento da torre em si. 

Ainda no mesmo capítulo, corpo e casa começam a se confundir. Jung, em O Homem e Seus Símbolos, ao enumerar suas experiências observando os símbolos no inconsciente, menciona que é comum, em sonhos, o corpo humano ser representado por casas. As cicatrizes no corpo de Clara são tão valiosas para ela quanto os detalhes considerados velhos em sua residência. São como “mensagens numa garrafa”, como ela própria define ao ser perguntada sobre seu gosto por discos de vinil, bem como lembranças de batalhas passadas. Ao longo de todo o filme, o afinco da construtora interessada no apartamento de Clara em dobrá-la esbarra em uma Clara obstinada e potente como só um fenômeno da natureza consegue ser.

Em “O Amor de Clara”, o segundo capítulo, Clara retorna ao posto de humana e vive as experiências mais terrenas possíveis, como um efêmero romance e, posteriormente, uma noite com um garoto de programa. O segundo elemento do arcano d’A Torre, os dois seres humanos lançados da edificação, são aqui incorporados por ela. Pouco a pouco a construtora lança mão de métodos cada vez mais intimidadores para fazer com que Clara venda seu apartamento. Embora não por completo, a personagem principal é subjugada e reduzida a uma impotência apreensiva. Tais subjugo e impotência, além de serem percebidos em seu embate relativo ao apartamento, ficam claros quando, em seu rápido envolvimento com um homem, fica implícito que ele desistira de levar sua relação adiante devido a Clara não mais ter uma das mamas, em razão do câncer pelo qual passara quando jovem.

A perda do apartamento de Clara, seria, então, uma jornada sacra de encontro de sua identidade para além de sua morada e das gerações que a precederam residindo nela, como se fosse projetada no mundo real a tentativa de sua própria consciência de irromper as fronteiras de seu corpo.

A valer, a carta d’A Torre não carrega somente esse nome. De modo diverso a representações modernas do tarô como o Rider-Waite, o tarô de Marselha apresenta o arcano como A Casa de Deus (em francês, La Maison-Dieu, o que causa controvérsias a respeito da tradução para A Casa de Deus e não a Casa-Deus). É possível reconhecer nesta nomenclatura a influência bíblica do mito da Torre de Babel. Tendo a prepotência de erigir uma edificação que alcançasse os céus, os seres humanos se depararam com a magnificência de Deus, que pôs abaixo a estrutura (não exatamente pela violência) e fez com que diferentes línguas fossem faladas pela humanidade.

Tanto o arcano de nº 16 eivado do nome A Casa de Deus quanto o mito bíblico da Torre de Babel possuem uma moral em comum: nada nem ninguém pode ousar atingir a perfeição e eternidade reservados à Criação. Se o fizerem, tendem a ser brutalmente cravados novamente à terra, sendo lembrados que é impossível ter domínio sobre os desígnios do destino e da vontade divina. 

Ao longo do segundo capítulo do filme, isso é o que se tenta dizer à Clara. Dois de seus filhos tentam convencê-la de que a venda do imóvel é uma consequência natural do tempo, e que tal escolha transcende sua vontade particular, como se ela devesse se render a essa força superior. Entretanto, a força superior em questão não é fruto de um intento celestial, mas sim de uma irrefreável ambição capitalista e especulativa do mercado imobiliário. Clara, então, tem razão ao não admitir que a ela seja imposta essa condição passiva de humana em relação à Torre, o que a torna uma personagem ainda mais interessante.

Alejandro Jodorowsky, em seu livro-tratado sobre o tarô de Marselha, O Caminho do Tarot, entretanto, nos dá uma outra perspectiva a respeito da extinção que se sucede no arcano 16. Segundo ele, com a destruição d’A Torre vem um “grande alívio espiritual”, pois o que quer que seja que se encontrava enclausurado naquela construção encontra liberdade pelo choque de uma espécie de transcendência do material. A perda do apartamento de Clara, seria, então, uma jornada sacra de encontro de sua identidade para além de sua morada e das gerações que a precederam residindo nela, como se fosse projetada no mundo real a tentativa de sua própria consciência de irromper as fronteiras de seu corpo.

Em um trecho do livro, Jorodowsky simula uma possível fala d’A Torre, se o arcano fosse humano. “Desprezando-me, isolando-me, crendo defender um território interior que só pertencia a mim, o que era eu na escuridão dessa torre? Mestre do quê? De que aparência, de que falsa identidade? Não passava do ar rarefeito de uma escuridão egoísta.” Uma das mais belas cenas do filme, antecipando talvez esta possível suplantação da identificação de Clara com a fisicalidade de sua vida, mostra a personagem saindo de um mergulho no mar serena, distinta, forte como se ela própria fosse o oceano.

A partir deste outro vislumbre d’A Torre, é evidente que o movimento trazido por ela não é somente de incursão de um fator externo, mas simultaneamente de uma erupção que se inicia nas mais profundas regiões da psiquê, da vida e das estruturas a que se refere.

O clímax do filme e, finalmente, o raio que atinge A Torre, residem no terceiro e último capítulo, denominado O Câncer de Clara. A questão do tratamento de seu câncer de mama foi mencionada no primeiro capítulo e nesse não há retorno explícito ao assunto. O que acontece é que, após tratativas malsucedidas entre ela e a construtora, que escalam para uma discussão pungente entre a protagonista e o jovem representante/herdeiro Diego (Humberto Carrão), Clara descobre que o prédio foi sabotado. Diego havia mandado funcionários posicionarem casas de cupim nos andares superiores, que se alojaram nas paredes de forma a eventualmente destruí-lo por dentro.

Visualmente, é como se a infestação de cupins se comportasse como um câncer. Mais uma vez o corpo de Clara e sua casa se confundem. Susan Sontag, em seu brilhante ensaio Doença como Metáfora, examina o uso de doenças pela linguagem de forma a estigmatizar, ilustrar ou glamourizar um tema. Em relação ao câncer, a autora versa sobre a doença, diferentemente da tuberculose, de que também trata no livro, ser uma enfermidade que pertence, metaforicamente, ao corpo e ao espaço. Isso porque a tuberculose, segundo ela, seria mais associada ao tempo. Susan também menciona o fato de que são células “alienígenas” que invadem o corpo do enfermo, apesar de sua multiplicação ocorrer interiormente. A Torre encontra aqui seu espaço de exogenia e endogenia concomitantes. O prédio de Clara está a ponto de ser demolido por agentes externos, mas por fatores substancialmente internos, instalados por eles.

Clara lida com este novo “câncer” da maneira, de fato, bélica com que geralmente endereçamos o tratamento da doença: ela o enfrenta, luta contra ele. Ao levar a casa de cupins ao escritório da construtora e lá, simbolicamente, quebrá-lo junto a pedaços de madeira infestados, Clara dá seu recado. Não é possível saber seu êxito nessa batalha, mesmo com provas tão contundentes contra seus inimigos. Mas uma coisa é fato: dentro ou fora dela, ninguém sai o mesmo após a ruína d’A Torre.


Releitura da carta A Torre (do tarô moderno de Waite-Smith) feita pela artista visual Bambi.

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